MARIE CURIE E A RADIOATIVIDADE
A física polonesa Maria Skodowska Curie (1867-1934) é uma famosa personagem da história da ciência. Foi a primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel, conseguindo se destacar como pesquisadora em uma época em que as universidades eram um domínio masculino. Mas qual, afinal, foi sua contribuição importante à ciência? Podemos dizer que, com a colaboração de seu marido Pierre Curie, ela “inventou” a radioatividade e descobriu novos elementos radioativos – o tório, o polônio e o rádio. Foi apenas a partir do seu trabalho que surgiu um enorme interesse pelos fenômenos radioativos e que essa área começou a se desenvolver de fato.
Costuma-se dizer que a
radioatividade foi descoberta pelo físico francês Henri Becquerel (1852-1908)
em 1896. No entanto, somente dois anos depois, em 1898 (um século atrás) o
fenômeno da radioatividade foi percebido como algo totalmente novo, graças às
pesquisas de Maria Curie e seu marido, o físico francês Pierre Curie
(1859-1906). Vamos contar essa história.
O INÍCIO NA VIDA ACADÊMICA
Em 1897 aos 30 anos de idade, Maria
Curie ainda era uma pessoa desconhecida. Polonesa, de família pobre, conseguiu
com muitas dificuldades estudar em Paris, onde obteve as licenciaturas em
Física (1893) e Matemática (1894). Casou-se no ano seguinte com Pierre Curie,
um pesquisador oito anos mais velho do que Marie, experiente, que já tinha publicado
importantes trabalhos experimentais (sobre a “piezoeletricidade”, um fenômeno
em que cristais submetidos a tensões produzem eletricidade) e teóricos. Maria
realizou suas primeiras pesquisas sobre um tema não muito interessante de
física aplicada: o estudo do magnetismo de aços industriais. Em 1897, após uma
gravidez difícil, nasceu sua primeira filha, Irène. Logo depois, com o apoio do
marido, Maria resolveu tentar aquilo que nenhuma mulher havia ainda conseguido:
um título de doutora em física, pela Sorbonne.
O tema escolhido para o
doutoramento foi a estranha radiação emitida pelos compostos de urânio, que
Henri Becquerel havia descoberto dois anos antes. Nessa época, não se falava
sobre “radioatividade” – essa palavra só foi inventada em meados de 1898, pela
própria Maria Curie. A descoberta de Becquerel era uma coisa considerada de
pequena importância. Ele notara que diversas substâncias contendo urânio
emitiam certos raios invisíveis parecidos com os raios X, que atravessavam o
papel e produziam manchas em chapas fotográficas. No entanto, esse fenômeno não
parecia algo extraordinário: era explicado pelo próprio Becquerel como um tipo
de fosforescência invisível – um fenômeno semelhante, portanto, a outros bem
conhecidos. Seguindo uma sugestão do físico inglês Silvanus Thompson
(1851-1916), o fenômeno era chamado de “hiperfosforescência”. Becquerel havia
escrito alguns artigos curtos sobre o assunto, e depois abandonara essa linha
de pesquisa, que não lhe parecia promissora, dedicando-se a outro fenômeno que,
na época, lhe pareceu muito mais importante. Trabalhos publicados por diversos
autores da época pareciam indicar que muitos outros materiais também emitiam
radiações invisíveis capazes de produzir marcas no papel fotográfico: giz, papel
comum, açúcar, e até vagalumes.
Maria Curie deve ter iniciado o estudo das radiações do urânio sem
grandes expectativas. O primeiro tópico que estudou foi a condutividade
elétrica do ar produzida por esses raios. Quando se coloca um composto de urânio
perto de um objeto eletrizado, ele se descarrega. Em sua pesquisa, Maria Curie
fez medidas desse efeito utilizando um instrumento que Pierre Curie havia
inventado – um aparelho de medidas elétricas que utilizava um quartzo
piezoelétrico. Não há dúvidas de que Pierre foi quem orientou os primeiros
passos de Maria nessa pesquisa.
AS PESQUISAS COM
RADIOATIVIDADE
A escolha do método elétrico foi um golpe de sorte. O uso de chapas
fotográficas para estudar as radiações era uma técnica inadequada, porque elas
são influenciadas por inúmeros fatores: calor, pressão, umidade, efeitos
químicos, etc. Enquanto apenas se utilizava chapas fotográficas, era impossível
perceber que as radiações do urânio eram uma coisa diferente das outras
supostas radiações invisíveis. No entanto, quando foram estudados os efeitos
elétricos, foi possível perceber que o giz, o papel, o açúcar e as outras
substâncias que pareciam emitir raios invisíveis não tornavam o ar condutor de
eletricidade. Maria Curie testou
diversos compostos e minerais contendo urânio. Todos eles tornavam o ar
condutor. O efeito observado dependia da proporção de urânio nos compostos, mas
não dependia dos outros elementos presentes. Isso indicava que a emissão de
radiação não estava associada à estrutura molecular ou cristalina das
substâncias em questão, dependendo apenas da quantidade de átomos de urânio no
material.
Maria Curie examinou um grande número de substâncias comuns, depois
começou a testar sistematicamente todos os compostos químicos e minerais que
existiam no laboratório da Escola Industrial de Química e Física, onde
trabalhava. Inicialmente, nenhum deles parecia produzir efeitos semelhantes ao
urânio. Após muitos resultados negativos, no entanto, Maria Curie encontrou a
primeira novidade: os compostos de tório também produziam efeitos iguais aos do
urânio.
Perceber que as radiações estudadas por Becquerel não eram uma
propriedade exclusiva do urânio foi um passo importante, mas na verdade essa
descoberta de Madame Curie já tinha sido antecipada: dois meses antes, o físico
alemão Gerhard Schmidt (1865-1949) já tinha descoberto que o tório também
emitia radiações do mesmo tipo.
Além do urânio, do tório e seus compostos, ela notou que o cério, o
nióbio e o tântalo também pareciam fracamente ativos. Já se sabia que o fósforo
branco também era capaz de ionizar o ar, mas Maria Curie notou que outras
formas do fósforo (fósforo vermelho, ou fosfatos) não produziam o mesmo efeito
e que, portanto, provavelmente se tratava de um fenômeno de natureza
diferente.
Examinando diversos minerais naturais, Marie Curie notou que, como era
de se esperar, todos os que continham urânio e tório emitiam as radiações
ionizantes. Porém, para sua surpresa, observou que alguns minerais produziam
radiações mais intensas do que o urânio ou o tório puros. A calcolita natural,
por exemplo, era duas vezes mais ativa do que o urânio metálico. Isso
contrastava com os resultados anteriores que indicavam que a intensidade de
radiação era proporcional à quantidade de tório ou de urânio dos compostos.
Para verificar se esse resultado era devido à natureza química dos materiais,
Curie sintetizou um dos minerais, a calcolita (fosfato cristalisado de cobre e
de urânio) a partir de substâncias químicas puras, e notou que essa calcolita
artificial era tão ativa quanto outros sais de urânio, e menos ativa do que o
urânio puro. Marie Curie conjeturou que esses minerais deviam conter algum
outro elemento desconhecido, mais ativo do que o urânio.
UM NOVO ELEMENTO QUÍMICO?
Esses primeiros resultados pareciam muito importantes. Pierre Curie, que
até esse momento apenas acompanhava o trabalho de Maria, resolveu abandonar
suas outras pesquisas e dedicar-se totalmente, com sua esposa, a esse novo
tema.
Casal Curie
A partir desse instante (abril de 1898), a pesquisa de Maria e Pierre
Curie foi guiada pela hipótese de que a emissão das radiações que estava
estudando era uma propriedade atômica, peculiar a certos elementos químicos.
Certos elementos emitem, espontaneamente, essas radiações (são radioativos), e
essa propriedade não é afetada pelo seu estado físico ou químico. Não se trata
de um fenômeno parecido com a fosforescência, porque não é modificado quando se
ilumina o objeto ou quando ele é mantido no escuro. Era rejeitada, assim, a
hipótese da hiperfosforescência, que Becquerel adotava. Outros elementos não
são radioativos e não podem adquirir a capacidade de emitir radiações. Esse era
o conceito básico de radioatividade, proposto por Maria e Pierre Curie em
meados de 1898. Posteriormente, essa hipótese teve que ser modificada (existe a
radioatividade artificial, induzida), mas isso só ocorreu muitos anos depois.
Os minerais mais radioativos de urânio estudados por Maria Curie foram
algumas amostras de pechblenda (mineral de óxido de urânio), que chegavam a ser
quatro vezes mais ativas do que o urânio metálico. Baseando-se em sua hipótese,
Maria e Pierre Curie suspeitaram que esses minerais poderiam conter uma pequena
quantidade de outra substância fortemente ativa, e resolveram tentar isolar
essa substância dos minerais, por processos químicos. Tratava-se,
evidentemente, apenas de uma hipótese, que poderia se mostrar falsa. No
entanto, eles resolveram investir todo seu esforço, durante os meses seguintes,
nessa pesquisa.
Note-se que o elemento procurado não
era nenhum dos conhecidos até então pela ciência, pois Maria já havia testado
todos eles. Tratava-se, portanto, de uma tentativa extremamente ambiciosa:
descobrir um novo elemento, desconhecido pelos químicos, mas existente em
minerais conhecidos, e fazer isso através do estudo da radioatividade. Se a
hipótese fosse confirmada, seria um resultado muito importante. Mas havia
também o risco de um fracassso completo, porque afinal de contas não se sabia
quase nada sobre a radioatividade.
Maria Curie se dedicou à separação dos elementos da pechblenda,
utilizando os procedimentos químicos conhecidos e testando a radioatividade de
cada substância isolada do mineral. Depois de muitos processos de separação,
obteve um material que se comportava como o bismuto, sob o ponto de vista
químico, mas que era fortemente radioativo – enquanto o bismuto comum não
emitia radiações. Seria preciso aceitar que havia um novo elemento,
desconhecido, misturado com o bismuto, ou então que uma mesma substância podia
ser radioativa ou inativa, em situações diferentes. Guiados pela hipótese de
que a radioatividade é uma propriedade atômica de certos elementos, os Curie
estavam convencidos de que havia algo novo misturado ao bismuto. Mas como
separá-lo? Como provar que existia ali um novo elemento?
A
DESCOBERTA
Seguiu-se um período de muitas tentativas fracassadas. Maria e Pierre
trabalharam juntos, e suas letras se alternam nos cadernos de laboratório onde
eram anotadas suas idéias e experimentos. A separação completa do novo elemento
não foi conseguida. No entanto, através de sucessivos processos de purificação,
foi possível obter um material que ainda se parecia com o bismuto, mas que era
400 vezes mais ativo do que o urânio. Os Curie mantiveram a hipótese de que
havia um novo elemento na substância que havia sido separada, e deram-lhe o
nome de “polônio”, em homenagem à terra natal de Maria.
Continuando a investigar a pechblenda, com a ajuda de Georges Bémont, o
casal Curie descobriu que era possível encontrar mais uma substância fortemente
radioativa. Novamente, essa substância parecia difícil de ser isolada. Após uma
série de reações químicas, como no caso do polônio, foi possível obter um
material fortemente radioativo, mas suas propriedades químicas eram dessa vez
iguais às do bário. Como no caso anterior, foi possível aumentar a concentração
do material radioativo, através de processos de dissolução e precipitação,
obtendo um material 900 vezes mais ativo do que o urânio puro, sem no entanto
conseguir uma separação total do bário. Eles supuseram que havia um novo
elemento desconhecido misturado ao bário, e deram-lhe o nome de “rádio”.
Maria Curie Para tentar demonstrar a
existência dos novos elementos, os Curie imaginaram um teste decisivo: analisar
o espectro dos materiais radioativos que haviam obtido. Cada elemento químico,
quando vaporizado e percorrido por uma descarga elétrica, emite uma luz cujo
espectro luminoso é constituído por certas linhas luminosas coloridas. A
expectativa dos Curie era de que o espectro do bismuto radioativo (que
supostamente continha polônio) e o do bário radioativo (que supostamente
continha rádio) mostrassem linhas espectrais novas, diferentes das dos
elementos conhecidos, o que seria uma importante confirmação de suas hipóteses.
No caso do bismuto radioativo, o teste foi um fracasso. Eugène Demarçay,
um químico que trabalhava com Curie na Escola, especialista em espectroscopia,
fez o teste para eles. Apesar de todos os seus esforços, não conseguiu notar
nenhuma raia espectral nova. No entanto, alguns meses depois, fazendo o mesmo
teste com o bário radioativo, a expectativa foi confirmada: Demarçay encontrou
uma raia luminosa diferente de todas as conhecidas, e que era mais visível no
material mais radioativo. Essa era uma forte evidência a favor da existência do
rádio, um novo elemento químico. O trabalho em que esses resultados eram
apresentados foi lido na Academia de Ciências de Paris um dia depois do Natal:
26 de dezembro de 1898.
Com os resultados inesperados e extremamente importantes obtidos em
1898, estava aberto o caminho para os estudos que o casal Curie realizou nos
anos seguintes. A linha fundamental de trabalho passou a ser a de tentar isolar
o polônio e o rádio da pechblenda, procurando obter esses elementos em forma
pura, para determinar suas propriedades (especialmente o peso atômico). Durante
quatro anos, de 1899 a 1902, o trabalho a que eles se dedicaram – realizado em
sua maior parte por Maria – foi tratar quimicamente uma tonelada de pechblenda,
purificando gradualmente seus materiais radioativos. O polônio, infelizmente,
conseguiu resistir a todas as tentativas que fizeram, e não foi isolado por
eles. Obtiveram, no entanto, cerca de um décimo de grama de cloreto de rádio
quase puro, e conseguiram determinar o peso atômico desse elemento:
aproximadamente 225.
Durante esses quatro anos, a teimosia de Maria Curie não lhe permitiu
desistir do trabalho, mesmo quando ele parecia não avançar. O esforço físico
exigido pelo trabalho era enorme, pois ao invés de utilizar pequenos tubos de
ensaio era preciso manipular baldes e caldeirões com cerca de 20 kg de material
de cada vez, transportando os recipientes de um lado para o outro, fervendo os
líquidos, misturando com outros, borbulhando enormes quantidades do ácido
sulfídrico fedorento, etc.
O FIM DA
CARREIRA
Paralelamente aos esforços de Maria Curie para separar os novos
elementos químicos, Pierre se dedicou a outras pesquisas sobre a radioatividade
(especialmente sobre a natureza e os efeitos das radiações). Embora sempre
mantivessem uma colaboração ativa, algumas vezes publicaram trabalhos isolados,
como em 1903, quando Pierre mediu pela primeira vez, juntamente com André
Laborde, o calor emitido espontaneamente pelo rádio – a descoberta fundamental
da grande quantidade de “energia atômica” contida na matéria.
Os estudos realizados por Maria e Pierre Curie a partir de 1898
despertaram a atenção do mundo científico para a existência de um novo
fenômeno, e levaram muitos pesquisadores a se dedicar ao estudo da radioatividade.
Com a descoberta do rádio, os Curie colocaram à disposição dos pesquisadores
uma fonte de radiação muito mais intensa do que o urânio e o tório, permitindo
novos tipos de estudos – não só físicos, mas também médicos.
O trabalho do casal Curie foi sendo
gradualmente reconhecido, e já em 1900 eles eram considerados como os mais
importantes pesquisadores nessa área. Em 1903, enfim, Maria Curie defendeu a
sua tese de doutoramento em física na Sorbonne, e foi aprovada com distinção e
louvor. Em dezembro do mesmo ano, o casal Curie recebeu o reconhecimento
internacional pelo seu trabalho, ganhando o prêmio Nobel de física, pela
descoberta do polônio e do rádio (na verdade, meio prêmio Nobel, pois a outra
metade foi concedida a Becquerel, pela descoberta da radioatividade).
Em 1903 ocorreu, portanto, o coroamento das pesquisas iniciadas em 1898.
Pode-se dizer que, após esse período, a contribuição científica de Maria Curie
foi pequena – muito menor do que no período já descrito.
Em poucos anos, no entanto, a liderança das pesquisas sobre radioatividade passou a outras mãos. Não foram os Curie que encontraram a explicação correta dos fenômenos radioativos. A partir de 1902, o físico neo-zelandês Ernest Rutherford (1871-1937) e o químico inglês Frederick Soddy (1877-1956), trabalhando no Canadá, propuseram a teoria que aceitamos atualmente: a de que os átomos dos elementos radioativos se desintegram lentamente, emitindo radiações e se transformando em outros elementos químicos. A partir dos trabalhos de Rutherford e Soddy, a pesquisa sobre radioatividade tomou nova direção, e o trabalho pioneiro dos Curie passou a fazer parte do passado.
Fonte: http://www.ghtc.usp.br/Biografias/Curie/Curiedescob.htm
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